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Você namoraria umx monstrx? (Dia da Visibilidade Trans*)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014.
Ave Butler! Hail Derrida!

Texto que escrevo com todo carinho e sentimento por ocasião do Dia da Visibilidade Trans* (29 de janeiro) e como parte "extra" da blogagem coletiva nos sites feministas, LGBT's e aliados, mesmo na correria, achando que não o terminaria a tempo, espero que seja bastante útil. Sobre o tema e a abordagem, acredito que não seja nada pioneiro. Lembro-me de ter lido algo parecido em algum artigo acadêmico, cujo titulo acabou por se perder na memória. Escrevo, ou melhor desabafo, trazendo à tona uma série de sentimentos e de vivências pessoais, partindo do pressuposto de que o pessoal é político. Mas não falo daquela política que se faz nas ruas, nos espaços formais de militância e sim das lutas e das batalhas titânicas que acontecem todos os dias dentro da gente. Falarei com o coração sobre um tema que venho ensaiando à anos para escrever neste espaço e que acho que tenho maturidade e coragem para escrever.e espero que me leiam com o coração. E serei um pouquinho irônica tá?

Acabo de re-assistir à edição de 25º Aniversário  de O Fantasma da Ópera (Andrew Lloyd Webber), musical que sempre me emociona . Aliás, conheço todas as musicas de cor. E chorei de novo igual um bezerro desmamado, por me identificar muito com a sina de violência e desamor vivida pelo personagem-titulo. Não posso deixar de fazer paralelos entre a vida afetiva da maioria das pessoas trans*  (ou não-dicotômicas/não-identificadas), com a larga produção cultural em torno dos livros e filmes românticos do horror gótico. Se a vida desses pessoas se resume a provar aos outros que somos seres humanos, não me parece nenhum exagero tal comparação. Quem leu ou assistiu aos filmes  Edwards Mãos-de-Tesouras, Corcunda de Notredame, Drácula e Fantasma da Ópera já consegue se adiantar e entender a que estou me referindo. Não se trata de "vitimismos", mas de fazer as devidas comparações, aproveitar a metáfora dessas obras para debater a vida afetiva de quem é "diferente".

De uma maneira geral, todas essas obras, a maioria surgida como novela ou folhetim no século XIX ou começo do XX, segue uma mesma estrutura- até pra facilitar o diálogo com seu publico: a mocinha  se apaixona perdidamente pelo galã viril, depois à certa altura ela tromba com ums monstrx deformadx que se apaixona por ela, o galã que até então era o mocinho da história mostra-se um bandido ciumento e inescrupuloso (as vezes tem um terceiro personagem que faz esse papel, para tornar a trama mais complexa), x monstrx mata o mocinho para proteger sua amada e por ultimo a turba dos moradores da cidade se revolta pela morte do galã acima de qualquer suspeita e mata/expulsa x monstrx. 

Dai começaremos nossas críticas, nossa relação entre estas estórias e as narrativas afetivas das pessoas trans*. X monstrx é sempre assexual, elx pode até causar desejo, mas é com o mocinho que se espera que a mocinha fique no final e viva feliz para sempre. Indo mais além, x monstrx é sempre incapaz de amar e de sentir desejo. Perdi as contas de quantas vezes já me declarei para meninas (sou lésbica) e resultado sempre foi mais que um silêncio, uma indiferença mortal? È como se para as pessoas cis* uma declaração de amor, um "eu te amo/desejo" fosse tão profundo como um "batatinha quando nasce". É como se pessoas que estão fora da ordem fossem automaticamente desamáveis. Recentemente meu terapeuta disse diante das minha lamentações que eu deveria tentar ser mais amável, respondi-lhe que serei amável com quem o permitir, se e quando permitirem.

X monstro é sempre imoral. Afinal, em nossa sociedade ainda vitoriana, o estado do corpo representa o estado da alma e vice-versa. Toda tentativa que ele fizer para se aproximar do ser amado será sempre motivo de chacota, para ele e para a pessoa. Qualquer ato de bondade que fizer será visto como segundas intenções e se ele ousar chegar à menos de 500 metros será automaticamente acusado de estupro. Aliás, para alguma pessoas o simples fato dx monstrx existir e respirar já x torna umx estupradorx, umx agressorx em potencial. Nem falarei sobre a questão da loucura (x monstrx é sempre insano) porque no caso de pessoas trans*, o  acusador ainda conta com o CID-10 e o DSM-IV, manuais de psiquiatria e de saúde reconhecidos mundialmente pela OMS, para comprovar.

Queiram ou não a beleza padronizada dos normais é o passaporte por excelência à humanidade. Quantas vezes nos surpreendemos, ou píor, acabamos por reproduzir e naturalizar falas como "mas era umx moçx tão linda" em nosso dia-a-dia, especialmente quando uma pessoa querida e socialmente aceitável comete algum crime ou morre ou se suicida? O fato é que em nossa sociedade ainda vitoriana a cisnormatividade entendida como "o belo" trás privilégios ilimitados, torna a pessoa que se submete a ela, se  inclui na normas "imorrível" e  indefectível.

Final feliz, guetificação ou segregação?
A violência do mocinho é sempre justa, saudável, legítima, afinal ele representa a maioria, a norma, as virtudes desejáveis. A violência dx monstrx é sempre egoísta, torpe, maligna, pois representa apenas a própria solidão, o próprio desespero. Por isso, a violência física, a invisibilidade, a negação de qualquer forma de poder e de empoderamento, os risos e os chistes, toda execração publica dx monstrx é aceitável. O mocinho sempre terá o direito sagrado de matar x monstrx, livrar a sociedade de ver e conviver com tal decadência e receberá todos os aplausos por isso. X monstrx mata apenas pessoas inocentes, gente "estúpida o suficiente" para se aproximar delx. Monstrxs sempre acabam sozinhxs no fim da estória, seu "grand finale" é sempre a morte violenta ou o esquecimento. Afinal, mocinhos se casam com mocinhas, monstrxs se unem com monstrxs, e assim, cria-se e legitima-se uma divisão em duas castas de pessoas: as desejáveis e as invisíveis/execráveis. Afinal, quem namoraria umx monstrx?

A mesma sociedade ainda vitoriana que é tão lenta em amar é rápida em julgar e condenar. Ouse x monstrx se aproximar da mocinha, mesmo que a mocinha no fundo também seja uma ogra, como no desenho do Shrek (aliás, mais um ótimo exemplo), experimente subverter a ordem natural das coisas, ser amado e ter seu par, sua tampa da panela, e abrirá um portal extra-dimensional sugando todo o universo conhecido para o Reino de Hades. E tente usar de violência para ser visto ou percebido, tente usar de "backlash" para dizer que está vivo e que também tem sentimentos e a mesma sociedade ainda vitoriana acenderá os archotes e sairá pelas ruas com toda meiquice que lhe é peculiar, entoando o clássico "MATEM O MONSTRO!".

Por fim, deixo minha interpretação sobre o motivo do sucesso desse tipo de literatura. O monstro nada mais representa que nossos terrores internos, nossos medos da solidão, da não-aceitação. Representa o estado de perplexidade da sociedade industrial mecanizada, que em pleno século XIX tinha dominado um saber científíco muito avançado ao ponto de transmutar a natureza, mas os seres humanos não haviam aprendido à conviver entre si e viviam os horrores das guerras (talvez o maior exemplo disso na literatura seja a critura invertada por Mary Shelley,no clássico Frankenstein). Essa critica cabe como uma luva aos dias atuais e à questão trans* ou dos gêneros não binários, pós-gêneros, etc... Temos acesso á uma tecnologia nunca vista, capaz de alterar nossos corpos de uma forma nunca antes vista para que possamos ter acesso a um nível de satisfação nunca antes imaginado. Temos hormonioterapias, cirurgias avançadas e em constante desenvolvimento que permitem a redesignação sexo-genital, implantes de silicone, técnicas específicas de fonoaudiologia... mas a mentalidade das pessoas parece nunca alcançar o ritmo vertiginoso da tecnologia. 


Hoje no Brasil os mocinhos estão matando fisicamente umx monstrx por dia, ceifam essas vidas de forma desumana e com requintes de crueldade, simplesmente por não conseguirem conviver com suas anormalidades. Dizimam pessoas que já não têm o acesso aos espaços sociais, aos serviços públicos elementares (educação, segurança, saúde, lazer....), pois a sociedade tem medo de se infectar com suas monstruosidades. Tirando de vez das ruas criaturas que são socialmente rejeitadas, seres-humanos (embora o neguem) que não vivem plenamente suas relações sociais e afetivas, mesmo a sociedade ainda vitoriana "permitindo" suas paupérrimas existências. 

Eis a verdade: a sociedade dos normais não nos ama, não nos respeita, apenas nos tolera, desde que não saiamos mostrando nossa feiúra, nossa anormalidade pelas ruas, que não mexamos com seus sacrossantos privilégios hétero/cisnormativos. E de preferência que não saiamos das jaulas e das correntes.

NOTA: Neste artigo fiz questão de usar linguagem neutra (usando o polêmico "x") para me referir ao gênero/sexo do monstro, para assim demonstrar algo que sempre me chama a atenção neste tipo de literatura: por mais animalesco e distorcido que seja o corpo do monstro, ele sempre estará inserido no modelo dicotômico que dissocia o masculino do feminino e sempre será heterossexual. O maior exemplo disto talvez seja o alienígena da série "Alien", que, mesmo não tendo nenhum traço físico de humanidade, ainda é divido entre machos e fêmeas, com direito à naturalização de construtos socioculturais como "instinto materno".  Seria a necessidade de demonstrar que mesmo os monstros são obrigados a seguir determinadas normas de gênero? E por algum motivo que prefiro deixar em suspenso, aberto para debate, na maioria esmagadora das vezes, o  monstro pertence ao sexo/gênero masculino. 

Sobre a questão da maternidade na ficção científica, faço questão de deixar o belo artigo de minha querida Profª Ana Paula Vosne Martins (UFPR):                                       https://mega.co.nz/#!7RNFATLC!PLcvWHxfxM3W1_ICqzXXKkAO4BRhDqLLvn4FMfVa6xE


Clipe de hoje (o mais óbvio possível):

No closet

Desbundai e putiái!

2 Comentários:

Júnior disse...

Muito interessante. Fazia ideia sim do preconceito que as pessoas que não estão dentro do padrão socialmente aceitável recebem, mas ainda não havia relacionado à estes filmes, que vi na infância, e recordo de poucas cenas somente. Na verdade, um deles nunca assisti, o Fantasma da Ópera.
Meu intuito em comentar é de apenas expor que concordo plenamente com a ideia de que o feio, o diferente, o estranho, é rejeitado por aqueles que são os mocinhos. Muitas vezes, como bem falado, até são aceitos no meio, mas sem o mesmo envolvimento que possuem com os mocinhos, que é claramente percebido por qualquer um que ouse observar melhor o comportamento de um grupo.
Sou homem, tenho 25 anos, possuo uma hipercifose (corcunda), uma hiperlordose (curvatura da coluna na região das costas na altura da barriga), tenho 1,71m, 53 quilos (magro de mais), e ainda por cima, tenho a estrutura óssea fina, ou seja, serei sempre magricelo, e gente, isso já me trouxe tantas dores, frustrações a mais do que é comum, a ponto de em determinados momentos da vida, ter a loucura de pensar em me matar. Hoje, com mais amadurecimento, nem tanto assim, mas um pouco mais, sofro menos, acredito que de alguma forma criei mecanismos mais eficazes para suportar a dor emocional de não ser o tipo "mocinho", mas, vez ou outra, me encontro quebrado emocionalmente.
Nunca tive uma namorada, já até tive ficantes, mas poucas, algumas do tipo "mocinha", que inclusive, sofri na pele a experiência citada no artigo de presenciar a crítica de outros por ela estar ficando comigo.
Devido a essas vivências problemáticas decidi por não mais ir a festas, conhecer pessoas, e até ter amigos, o que até tinha em boa quantidade na época de escola, e hoje, não tenho sequer um.
A vida já é difícil para qualquer um, mesmo para os mocinhos, já para os mostrox, é muito pior, pois faz parte do ser humano querer encontrar um outro, compartilhar sua vivência, ter alguém que testemunhe suas experiências, e quando se vive sozinho, é como se a vida tivesse passando em branco, sem registro, sem fazer diferença alguma. Não estou querendo dizer que precisamos ter platéia, mas sim que compartilhar as experiências é algo que faz muito bem para o espírito.
Já vi casos de mocinho(a)s com monstro(a)s, mas nunca acompanhei uma história de um casal assim para saber se deu certo, mas que a sociedade critica, sem dúvidas, e quando é monstro com monstro, criticam do mesmo jeito.
Enfim, acredito que meu destino será viver todo o tempo que ainda tiver sozinho, aproveitando o que puder, sem criar expectativas de um futuro ideal, futuro este que está na mente de todos, pois até aqui, as experiências só me levaram a ter desesperança.

Júnior disse...

Ah, e havia esquecido, para completar o quadro lamentável, eu ainda tenho prognatismo classe III, que é ter queixo voltado mais para frente do que a maxila, tenho um queixão! Vou fazer a cirurgia mais para frente, logo quando puder, mas sei que os resultados não irão mudar esse quadro que vivo, pois os outros defeitos continuarão pelo resto da vida.

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