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"Pessoas Cis" (por Juno Cremonini)

terça-feira, 24 de setembro de 2013.
Ave Butler! Hail Derrida!

A seguir, posto com todo carinho um texto escrito pela Juno no Facebook. Texto que fala muito do que sinto agora em relação a exclusão trans* à minhas raivas, meus ressentimentos. Texto que lavou minha alma...

Li este texto pensando em várias coisas, nas minhas falas do evento maravilhoso chamado TRANSemana e que ocorreu na semana passado na FND (que farei questão de comentar noutro momento), e em minhas falas sobre a invisiblidade trans* nos espaços acadêmicos e de militância. Pensei nos meus amores não correspondidos, na transfobia mal-disfarsada nos espaços "libertários", onde muita gente se diz interessada, mas o tal interesse é por um "bem maior" (seja lá qual for...) Pensei nos casos das duas trans* que se mataram recentemente- brancas, provavelmente classé-média e aparência higienizada- e que acabaram com o suicídio causando comoção e ocasionando debates. Pensei nas travestis que morrem na pista, todas as noites, sem ter a mesma sorte, a mesma reação.

Tomei a liberdade de roubar tb uma foto mais expressiva em preto e branco. Curtam:
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Pessoas cis estavam prontas para receber as pessoas trans* nos flancos de suas lutas, como aquelas que dariam a aparência de projetos revolucionários onde congregariam-se todas as pessoas oprimidas, mas não estavam prontas para fazer destas novas vozes, vozes também predominantes, e frequentemente passariam por cima das nossas, quando tentássemos falar sobre quem éramos, e não só dar o efeito cosmético de que os movimentos das pessoas cis eram movimentos diversos, mas também afirmar desta diversidade nossa fome de dignidade.



Pessoas cis estavam prontas para escrever sobre as pessoas trans* e falar sobre aquilo que precisávamos, como éramos e que nome dar a nossa saúde, nosso corpo e nossa identidade. As pessoas cis e seus conjuntos teóricos sempre estiveram prontas para nomear patologias, estágios, identidades e posições políticas dos nossos corpos abjetos, mas não estavam prontas para os nomes que lhes daríamos mais tarde, ou de quando olhássemos para os nomes que nos deram e disséssemos: não é assim que quero que me chame.

Pessoas cis estavam prontas para nos receberem com sorrisos e braços abertos, e afirmar que eram nossas aliadas e que nos ajudariam a vencer a opressão, mas não estavam prontas para serem questionadas como reprodutoras desta mesma opressão, ou como o polo privilegiado da opressão que passávamos. Pessoas cis estavam prontas para nos oferecer uma cadeira num seminário, mas não estavam prontas para levantar das suas cadeiras quando alguém reproduzisse a transfobia que nelas estavam internalizada.

Pessoas cis estavam prontas para que nós somássemos e nos calássemos diante de seus discursos mais radicais por libertação, e as apoiássemos e encorajássemos a declarar morte e nojo aos seus inimigos, mas não estavam prontas para serem consideradas inimigas de ninguém, muito menos de serem descartadas pelo esforço político de uma pessoa trans* que ousasse ser tão radical e revolucionária contra a cis-supremacia quanto as pessoas cis estavam sendo com as outras opressões.

Pessoas cis estavam prontas para nos conferir uma letra numa sigla ou um prefixo num movimento, mas não estavam prontas para ver nosso discurso e nossas demandas encaixando-se de fato no cerne político dos movimentos sociais e do Estado que até então, e até hoje, nos reserva desprezo. Pessoas cis estavam prontas para descrever vagamente nossas demandas como "importantes", mas não estavam prontas para efetivamente sacrificar a forma velada como se tratavam até agora como prioridades.

Pessoas cis estavam prontas para considerar absolutamente qualquer comportamento de uma mulher trans* como uma gota restante de masculinidade que queriam expurgar, e qualquer ódio que sentisse como misoginia, mas não estavam prontas para perceber em si uma perpétua, odiosa e ensanguentada visão transfóbica do mundo. Seus ouvidos estavam entupidos de binarismo. Suas mãos estavam ensebadas de transfobia.

Pessoas cis estavam prontas para aceitar os corpos cisgêneros não-depilados, nus, empoderados. Mas pessoas cis não estavam prontas para olhar nossos corpos abjetos, muito menos se ousássemos ser pessoas gordas, negras, intersexo, com deficiência. Pessoas cis estavam prontas para afirmar suas sexualidades abertamente, mas não tinham se preparado para uma mulher trans* lésbica dizendo que era lésbica. Diante dela, inclusive, disseram que estava lhes estuprando porque supostamente exigia algo. Pessoas cis falharam em perceber que o que estávamos dizendo era que não havia nenhuma configuração sexual onde nos encaixávamos, muito menos aquelas pessoas entre nós que não somos nem homens nem mulheres.

Pessoas cis estavam prontas para reconhecer que nós eramos de verdade e que não estávamos indo a lugar nenhum, porque seu projeto genocida de nos matar a todas havia falhado, mas não estavam prontas para re-centrar seus movimentos e teorias pensando em nossas realidades e corpos e no fato da transgeneridade na história. Entre elas, algumas fingiam não ver as coisas e seguiam suas militâncias sem incluir-nos na pauta, outras decidiam nos incluir como o próprio inimigo a ser derrotado, somente para recomeçar o processo de nos expurgar da existência.

Pessoas cis estavam prontas para reconhecer a transfobia como uma realidade, mas não estavam prontas para entender o quão pervasiva, onipresente e violenta a cis-supremacia era. Estavam prontas para negar serem transfóbicas e para dizer que não admitiam a transfobia, mas não estavam prontas para refletir sobre o quão sutil era o lodo transfóbico que se impregnava entre seus dentes, e que saía com gata gota de saliva das suas bocas quando cuspiam na nossa cara sem perceber o ódio que a gente sentia pingar nas nossas bochechas e escorrer pra dentro das nossas bocas.

Pessoas cis estavam prontas para repetir a palavra "intersecionalidade" e "transfeminismo" como um mantra ou um bom-dia, mas não estavam prontas para ouvir nossas vozes de fato, e de abrirem suas práticas diárias e suas militâncias para as reais demandas e necessidades das pessoas transgêneras. Estavam prontas para receber em seus movimentos uma palestra de um homem trans*, mas estavam igualmente prontas para voltar a uma pauta invisibilizadora no momento em que ele fosse embora. A palestra não era uma mudança, era um episódio que cairia num ralo de esquecimento.

Pessoas cis estavam prontas para desenvolver sensibilidades absolutamente rigorosas sobre as opressões que lhes atingiam, mas não estavam prontas para terem o cissexismo visibilizado naquilo que faziam também. Estavam prontas para denunciar nas vozes transgêneras qualquer resquício opressivo, com razão, mas estavam igualmente prontas para negar e trivializar quando as pessoas trans* fizessem o mesmo.

Pessoas cis estavam prontas para falar das pessoas trans*, e de nomeá-las e referir-se a elas como isto ou aquilo, como assim ou assado, mas ainda se sentiam mal, ainda sentiam um incômodo e um desconforto quando liam a expressão "pessoas cis". Não queriam ver-se nomeadas e visibilizadas, o conforto da invisibilidade era uma sensação ainda muito recente, como se tivessem acabado de lhes retirar um chocolate. Não estavam prontas para serem delineadas e agrupadas como uma classe política, uma sensação que pessoas trans* conhecemos muito bem.


CLIPE DE HOJE: ("por que quis" e estou me sentindo muito triste)

 No closet

Desbundai e putiái!
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